A peça do escritor uruguaio Mário Benedetti ganhou o palco de inúmeros teatros brasileiros, e com razão. Afinal, este enredo composto pelo diálogo de um torturador com um torturado revela muito também da nossa história.
O tema da tortura está presente ao longo dos quatro atos que compõem a obra, mas o foco é a figura do próprio torturador. Como diz o autor: “Eu definiria a peça como uma interrogação dramática da psicologia do torturador. Algo assim como a resposta a porquê, mediante que processo, um ser normal se torna um torturador”.
É precisamente o desvelar-se do torturador que vai aparecendo nos quatro episódios do interrogatório que faz o capitão tentando convencer Pedro (Rômulo) a delatar seus companheiros. No cenário, nada além de duas cadeiras, uma mesa, sobre a mesa um telefone, e numa das paredes um lavabo com uma pia, sabão, vaso, toalha… Ao longo de toda a peça o cenário será o mesmo; e apenas duas personagens o ocupam
No primeiro ato, Pedro é empurrado para a cela de interrogatório, visivelmente após uma sessão de tortura. Vem encapuçado e durante todo o episódio não diz mais do que a palavra Não. O torturador, no entanto, fala, fala, argumenta, ameaça com torturas cada vez maiores. Já de entrada, o torturador vai mostrando sua cara e apontando para o futuro deste interrogatório:
Parece que optaste pela resistência passiva. O fraco Gandhi sabia muito sobre isso. Mas uma coisa era os hindus contra os ingleses, e outra coisa é vocês contra nós. A resistência passiva, hoje, não resolve nada. É – como te direi? – anacrônica. Desde que os ianques – veja que digo ianques como vocês – impuseram seu estilo tão eficaz de repressão, a resistência passiva foi ao caralho.
Ameaça trazer a mulher e o filho para a prisão, afinal entre os “torturadores elétricos”, tirada do capitão para referir os manobradores dos choques elétricos, “há aqueles que são partidários da técnica brasileira de torturar as crianças diante de seus pais, sobretudo diante da mãe”.
Sempre se apresentando como o “bom”, o que não faz o serviço sujo mas ordena que o façam, o capitão vai oferecendo vantagens a Pedro se ele delatar. Mas somente ouve seus repetidos – NÃO!
No segundo ato, o capitão retira o capuz e então Pedro começa uma conversa que, à medida que segue, vai desvendando o próprio torturador. Pedro justifica que há um mínimo de dignidade que deve ser preservada e que na sessão anterior nada falava porque estava encapuçado. Sua fala é direta, nas palavras do torturador, “um jogo limpo”:
– Quero deixar claro que o fato de você não participar diretamente em minha tortura, não quer dizer que não o odeie, nem mesmo que o odeie menos.
A partir desta sessão, parece que o torturado acaba por tomar a dianteira e começa a mostrar que o torturador, como todo o inquisidor, no afã de obter informações vai revelando a si mesmo. Tanto que o capitão acaba por lhe perguntar como ele é!
Capitão: – Parece-me que te perguntei como sou.
Pedro: – Sim, já sei. Mas é absurdo. Mete-me em cana, faz com que me rebentem, e ainda exige que lhe sirva de analista. Isso não!
Capitão: – Afinal, me imagino como sou.
Pedro: – Então estou de acordo com esse autodiagnostico.
Capitão: – E se me sinto nobre e digno?
Pedro: – Sabe o que se passa? Você não pode vender a si mesmo essa mentira. Não pode imaginar-se nobre e digno.
Nesta sessão, em que o capitão oferece vida e liberdade a Pedro caso ele denuncie a quatro de seus companheiros, Pedro lhe dá uma resposta digna de nota:
– Não, simplesmente não. Você me oferece que viva como morto. E antes disso, prefiro morrer como vivo.
Em passo imediato, como Pedro lhe perguntara se tem família, mulher e filhos. Por defeito profissional, o capitão pergunta se está sendo ameaçado… A questão real era saber como ele se sentia quando chegava em casa depois de um dia ordenando torturas, ouvindo gemidos e gritos, interrogando e querendo delações. Como conseguia beijar sua mulher e o casal de filho que tinha? O capitão acaba por fazer sua primeira “confissão”: “É lógico que uma pessoa sofra ao ver outro sofrer”. Abre-se, a partir daí, a porteira do psiquismo do torturador.
No terceiro ato, e terceira sessão do interrogatório, Pedro chega mais rebentado ainda, e com sua chave de resistência: diz-se morto. E como está morto, ainda que reste um tempo para o corpo, está livre e pode voar… Aparecem então, na fala de Pedro, lembranças do começo de seus encontros com a mulher Aurora (Beatriz). Ao mesmo tempo, cada vez mais vai se mostrando o círculo vicioso em que está preso o capitão. Um pormenor que não pode passar desapercebido: nas sessões anteriores, o capitão tratava Pedro por “tu”, enquanto Pedro o tratava por você. Agora inverte-se a situação, é o capitão que passa a tratar Pedro de modo formal. No diálogo a seguir aparece o tema efetivo desta peça:
Pedro: – Já te disse que estou morto? Ah, sim, te disse quando tu ainda me tuteavas. Bem, antes de sair daqui deste “bairro”, gostaria de descobrir algo que para mim é um mistério.
Capitão: – E eu, o que tenho a ver com isso?
Pedro: – Tens que ver, como não! Quero descobrir o mistério de como um homem pode, sem ser louco, sem ser uma besta, converter-se num torturador. (Pausa). Imagina que estou morto, ou seja, que não vou contar a ninguém. É somente para mim, não mais.
Capitão: – Eu não sou um torturador.
Pedro: – Ah, não?
Na sequência desta sessão, o torturador relata sua formação como tal; seu treinamento; suas reações nas primeiras torturas que infligiu; chegando ao episódio em que ao torturar uma mulher provocando choques elétricos dentro da vagina, o torturador se descobre seu gozo com a tortura: tem uma ereção! Mais tarde, em casa, na cama com a mulher, não consegue ter ereção, e somente a obtém imaginando a mulher que torturara…
À medida em que vai se mostrando, o torturador tem que achar alguma justificativa para o que faz, e sua justificativa é a eficiência da tortura: com ela consegue informações.
Capitão: – É por isso que não posso retroceder, é por isso que não posso ceder. É por isso que tenho que fazer falar. Já andei muito longe por este caminho. Compreende agora? Compreende por que vai ter que falar?
No quarto e último ato, no mesmo cenário, Pedro é jogado semi-morto para o interrogatório. O capitão já está visivelmente desconfortável, arruinado e isto se revela inclusive em seu modo de vestir desleixado para um oficial. Nesta sessão, Pedro desmaia, mas se aguenta e fecha sobre o torturador seu torniquete: a mulher e filhos do capitão ainda o odiarão quando souberem qual é efetivamente seu trabalho. Na primeira briga na escola, jogarão na cara de seus filhos que o pai era um torturador. A mulher não mais vai querê-lo quando souber a verdade.
Em parte da sessão, cada um dos personagens fala consigo mesmo, numa espécie de devaneio. Quando o capitão “volta a si” e percebe que todo seu esforço, toda sua crença na eficácia da tortura, tudo está indo por água abaixo, porque Pedro está muito próximo da morte, cai de joelhos e pede-lhe que delate, ao menos um, aquele de que ele menos gosta. Que diga apenas um nome… tudo para salvar o capitão! E mais uma vez, a resposta é NÃO.
Nos tempos que vivemos no Brasil, quando mais se aprofunda o golpe de 2016, é fundamental revistar esta obra de Mário Benedetti. E começar a entender que mesmo um Sérgio Moro, acusador-juiz e encarcerador com prisões preventivas até conseguir, por esta tortura, a delações “premiadas”, também ele se revela o que é, como o capitão aqui se desvelou ao longo dos interrogatórios.
Referência: Mario Benedetti. Pedro y el Capitán. Madri : Alianza Editorial, 6ª. reimpressão, 2009. [as citações foram traduzidas por mim]. Há uma tradução de todo o texto disponível na internet: http://oira.ufsc.br/files/2018/01/Pedro-e-o-Capit%C3%A3o-tradu%C3%A7%C3%A3o.pdf
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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